terça-feira, 12 de novembro de 2013

Crónicas de uma viagem - Caminho de Santiago

A presente crónica narra a viagem de uma peregrina pelo caminho português de Santiago. Dada a sua extensão e o formato de diário que este texto apresenta, optei por publicar, separadamente, as várias crónicas que compõem a viagem, de modo a facilitar aos leitores o acompanhamento deste percurso.

Aproveito também para agradecer à Isabel Passarinho por amavelmente ter cedido ao Opina - Espaço de Divulgação Cultural as presentes crónicas, de sua autoria. Dito isto, desejo-vos a melhor das leituras.

Nuno Soares


Entendo os Caminhos de Santiago como uma metáfora da vida.
Achei que precisava desta viagem para eliminar ruido à minha volta e ouvir a minha voz, aquela voz que vem do coração e ajuda a separar o essencial do acessório, que ajuda a integrar pedaços descosidos e a projetar futuros.
Este ano fui fazer o Caminho Português de Santiago a partir de Ponte de Lima – isso nada teria de extraordinário se eu não fosse já um pouco ‘cota’ (53 anos) e se não fossem os desafios presentes em todo o projeto: nunca tinha ido de férias sozinha; não andava de mochila desde os meus 20 anos; nunca tinha andado tanto a pé (mais de 170 Km); nunca tinha dormido em albergues; não tenho uma preparação física excecional e não tenho motivação religiosa.
Tanta novidade merece que eu conte a história desta aventura - e é o que me proponho em 10 crónicas mais ou menos caóticas e sem pretensões literárias.
Partilhar a experiência, no seu misto de viagem espiritual e de percurso reflexivo e inspirador de muitas aprendizagens é muito mais do que dizer como se chega Santiago; e, por mais que muitos aspetos desta viagem sejam indizíveis é sempre uma superação.
Bom caminho!


Cronica 1 – Falsa partida
Dias 1 e 2 - Lisboa/Braga/Ponte de Lima (de camioneta)

12.00h - Falta uma hora e meia para a camioneta. A sala de espera do terminal rodoviário parece um formigueiro, com gente em trânsito, pessoas de todas as cores e feitios que arrastam bagagens igualmente diversas. Cheguei com muita antecedência, depois de fazer uma paragem numa superfície comercial para comprar uma lanterna pequena e uma corda para atar o saco cama à mochila e de ter conseguido encontrar um lugar grátis para estacionar o carro. [Estou a ultrapassar a estranheza de circular com roupa desportiva e de mochila às costas. Tenho ideia que as pessoas olham para mim. Deve ser pela idade. Será menos frequente ver senhoras de 50 anos nestas andanças …ou sou eu que não estou acostumada.]

Tinha decidido quase de véspera fazer o caminho português. Nunca parece o momento certo para fazer uma viagem destas e à semelhança das coisas que não se podem levar, parece que se deixa tudo e todos para trás. Na decisão pesou o preço da viagem e o grau de dificuldade, mas decidi uma semana antes, não mais. Pelo contrário, a decisão de ir fazer o caminho de santiago foi tomada com muita antecedência.

Era uma vontade antiga que foi sendo adiada por circunstâncias da vida, por inércias e medos e cujos contornos de motivação também se foram modificando, à medida que eu própria também ia mudando – agora, não tinha nenhum bom argumento para não ir. Talvez seja este um dos aspetos que me parece essencial: tomar a decisão de ir; depois, o resto vem por consequência, são detalhes técnicos. Tomar a decisão verdadeiramente, implica um compromisso que cada um faz consigo próprio sobre o que se propôs, onde não existe lugar para as boas desculpas.

Depois o «como é que o vai fazer» é uma cadeia de decisões mais pequenas que se vão colocando…mas é uma provação cumprir a decisão. Desde os fatores externos, como a pressão que algumas pessoas mais próximas fizeram (que foi do ‘não vás!’ ao ‘sempre vais?’, à semana anterior à partida em que tive imenso trabalho e aos aborrecimentos causados por um endereço de email pirateado), até aos fatores internos, como os medos e as dúvidas que me assaltaram. A preparação da saída é muito mais do que fazer a mochila e, nem isso foi fácil.

Na mochila (emprestada, porque achei que não seria o caso de fazer investimento porque habitualmente não utilizo) consegui colocar o que pensei levar, mais os receios ‘não sei se aguento’, ‘vai doer-me a solidão?’, ‘e, se for roubada?’, ‘e se chove?’… 

Foi decisivo ter começado a dizer a toda a gente com 2 meses de antecedência que iria fazer o Caminho. Partilhar esta informação, significou ao mesmo tempo um reforço da ideia de ir e uma oportunidade de conhecer alguns dos mitos que estão associados ao caminho: ‘também gostava muito, mas…’, ‘é muito difícil, não estou preparada’, ‘é uma promessa?’, ‘com quem vais?’, ‘não tens medo?’, …

No caso, tenho 53 anos, os filhos estão criados, os meus pais já faleceram, não tenho dependentes a cargo (a não ser financeiramente) e podia meter duas semanas de férias para realizar este projeto (que é low cost) e foi encarado como uma espécie de teste-prenda a mim mesma. Sozinha? Bom, fazer o caminho sozinha aconteceu, não foi propriamente uma escolha deliberada. Não sou fã de excursões organizadas e dessa forma não o faria, mas sobretudo não coincidiu em tempo que ninguém das minhas relações/afetos tivesse tido a mesma vontade e possibilidade. E como tinha tomado a decisão de ir, fui.

13.30h – Acabei de perder a única camioneta que havia para Ponte de Lima. Estava no cais de embarque com 20 minutos de antecedência, sozinha, em pé. O autocarro chegou à hora com poucas pessoas, parou por uns minutos para retirar as bagagens, o motorista saiu e sem que eu tivesse visto entrou e partiu de imediato sem ninguém.

Demorei um bocado a perceber o que se tinha passado: primeiro pensei que o carro tinha ido abastecer combustível mas depois, com o tempo a passar, percebi que o tinha deixado escapar mesmo à frente do meu nariz. Danada, fui à bilheteira confirmar o desaire e converter o bilhete para Braga. Para Ponte de Lima só amanhã à mesma hora e perderia o dinheiro do bilhete, por isso decidi ir para Braga (com saída às 15h) e depois logo verei o que se segue.

18.00h – Vou de viagem rumo a Braga. Vou à larga. Espreito um programa horrendo que passa na TV, olho a paisagem e vou trocando mensagens com os meus mais próximos. Começo a sentir o afastamento da minha zona de conforto. Quanto ao ato falhado, começo a pensar ‘como e porquê’ é que isto me acontece. De vez em quando protagonizo episódios destes, entre o ‘nonsense’ e uma certa falta de prontidão, de excesso de contemplação, de ser pouco prática em algumas ocasiões. [os pensamentos introspetivos são interrompidos por uma certa agitação no autocarro].

Já chegámos a Braga? – é a pergunta repetida, muito repetida de um senhor que se agita no banco, levanta-se e dirige a pergunta a cada passageiro à sua volta. O homem, alto, magro, africano, relativamente novo, com uma deficiência mental evidente, embarcou em Lisboa como eu, e desde Gaia pergunta ‘Já chegámos a Braga?’. Pergunta alto e com tanta insistência que já todos lhe respondem. O Motorista tenta acalmá-lo e diz que o avisa quando chegar a Braga. O homem diz que vai ver um tio, que tem saudades, que é no Braga Shoping. São as passageiras mais velhotas que melhor falam com ele, com bonomia e compreensão. O homem continua a perguntar ‘ O BragaShoping é aqui, não é? É aqui? É aqui?’. Dá sinais de estar inquieto, questiona os passageiros do lado, de frente e de trás: ‘Não sabe onde é?’ O Braga Shoping é por aqui? Centro comercial, não é? Levanta-se (é muito alto e curva-se para não rasar o teto do autocarro), vai para o pé do motorista e continua com a mesma pergunta repetida, parecendo não ouvir o que lhe dizem.

Estamos ainda pouco habituados a conviver com a diferença e, em particular com a deficiência, nos contextos habituais de vida mas esse também é um caminho que está a ser feito.

20.00h – Em Braga está um anoitecer lindo e um calor alentejano. Já não cheguei a tempo de apanhar a última camioneta para Ponte de Lima, mas pedi os horários e a partir das 8h de amanhã o transporte é frequente. Por hoje terei de ficar em Braga.

Sai do terminal e fui farejando a cidade (tenho um bom sentido de orientação) até ao centro histórico – está muito mais bonito do que o que recordava de outras passagens pela cidade. Passei por um hostal que me pareceu uma boa hipótese para passar a noite. 

Fui jantar um bitoque adolescente que me carregou baterias e entretanto passou o mesmo homem do autocarro. Continuava a perguntar a toda a gente onde era o BragaShoping, mas tinha o olhar muito mais triste. Pelo visto, ninguém o esperava no terminal. Um casal jovem, deu-lhe indicações precisas e um cigarro que ele pediu. Depois seguiu noutra direção…

De mochila às costas, rumei ao hostal – €18,00 por noite em quarto com 4 camas – simpático e bom para me habituar aos albergues. Casa IKEA, bonita, prática, chave eletrónica para a porta do quarto, um gavetão no beliche com os lençóis para fazer a cama. Todos os outros hospedados estão na casa dos 20 e o jovem da receção, também; devem estranhar a cota, mas são simpáticos. Depois de me instalar e de tratar da higiene ainda fumo um cigarro na varanda, ao mesmo tempo que faço palavras cuzadas e termino os telefonemas.

Dia 2 - 10h

Dormi bem, apesar do calor. Como não fiz grandes preparativos e a semana anterior e o próprio fim-de-semana foram ‘a mil’, a passagem por Braga criou uma ‘almofada’ entre a minha vida acostumada e o Caminho…vou-me habituando à ideia de ir caminhar e à mochila - de fato, quando temos de carregar o que é nosso, a definição de essencial torna-se mais estreita.Fiquei fã do hostal que para meu espanto ainda tinha um excelente pequeno-almoço – tomei-o numa mesa corrida cheia de jovens alemães. Depois fui beber um café a sério numa das praças centrais e segui para o terminal rodoviário. Para já mantenho os vícios: café e um cigarro, de vez em quando.

Segui calmamente, a apreciar cada detalhe da cidade e ao passar nas lojas-bazar que ladeavam a estação rodoviária veio-me à ideia esta coisa da identidade portuguesa que é notória por uma série se símbolos, de tradições e de traços culturais. Na estação rodoviária circulam velhos portugueses com sacos de compras, em circuitos utilitários (suponho eu) e jovens estrangeiros de mochila, em viagem. Ainda não sei o que vou fazer: se fico em Ponte de Lima mais uma noite ou se inicio a caminhada hoje, pelo calor.

11.30h - Desta vez apanhei o autocarro sem problemas. A carreira entre Braga e Ponte de Lima serve sobretudo as populações locais nas suas deslocações regulares e, ao contrário dos autocarros da rede expresso, passa pelo meio das localidades. Transporta maioritariamente mulheres (incluindo a motorista).

No trajeto, destaque para Vila do Prado, uma terra muito bonita ao lado do rio Cávado. Decorria a feira semanal com grande movimento. As caixas de cartão com furos apinham-se no chão do autocarro com piares apertadinhos e quem sai faz votos de boa viagem aos passageiros que seguem. As senhoras do banco da frente falam dos fogos. Têm uma pronúncia local acentuada e usam expressões que não costumo ouvir.
[‘ E se a bouça arde?’ pergunta uma. ‘ Vou juntar a lenha da leirinha lá de cima’, diz a outra ‘tenho é que juntar água em casa... ‘bamos a ber’.] Mudam de assunto para as eleições autárquicas: ‘É o Júlio que se candidata?’, para depois concordarem que ‘não temos sorte com esta gente’. À medida que me aproximo de Ponte de Lima vejo a primeira sinalização do Caminho de Santiago mas ainda me sinto longe e cheia de tudo e de todos que preenchem a minha vida.

13.45h - Está um calor abrasador. O terminal de Ponte de Lima fica na parte nova da cidade e tive de ir até ao rio, seguindo por instinto e parando nas sombras. Finalmente encontrei o centro histórico, o rio e a ponte medieval de que me lembrava. A cidade tinha estado em festa e ainda tinha os enfeites nas ruas e os carroceis na beira-rio. Descobri o albergue sem muito esforço mas, como só abria às 17h, fiquei no café do lado a planear o Caminho. Fiz umas pesquisas vadias, fiquei com umas ideias, imprimi umas folhas com trajetos, etapas e dicas mas não planeei verdadeiramente.

[‘birou-se para mim e tal e disse-me: o mijão do teu namorado. Caralho, não lhe permito isso! Já não é a primeira vez que ele faz isto!...’ ] Enquanto ouvia a conversa ralhada da moça do café (que acabou de se irritar com um cliente e o presenteou com uma saraivada de asneiras em bom vernáculo) e olhava para o seu namorado (um hippie-xunga com ar de quem não está habituado a trabalhar), ouvia os planos do jovem casal que está de partida para trabalhar em Paris. A mãe da moça, grita da cozinha que lá há muito para ver. A moça está mais preocupada em levar um termo de bom café português porque lhe disseram que o café de lá é muito caro. No meio desta conversa, os poucos clientes do café estão ‘pregados’ na tv, no AXN. A centralidade da televisão nos cafés, uniformiza e evangeliza as pessoas sobre estilos de vida desejáveis e formas de pensar, de vestir e de ter relacionamentos.

Começam a chegar peregrinos. Ao meu lado, na esplanada, sentam-se dois irlandeses, pai e filho que já vêm a caminhar desde o Porto. O pai pergunta-me se sou peregrina, digo-lhe que vou começar amanhã e ele remata que somos todos peregrinos entre a igreja e o cemitério. Ficamos a conversar mais um pouco. Entretanto, liga-me a P. e diz que vai contactar o irmão que mora em Ponte de Lima para me mostrar a cidade. Digo-lhe que estou bem e que não é preciso, mas ela insiste e é a cunhada quem se oferece para vir ter comigo
.
22.30h - Já estou no Albergue mas tinha de vir à sala para escrever sobre esta noite. A S., a cunhada da minha amiga foi muito querida em vir fazer-me companhia e acabei por jantar com ela, com o marido, a filha e uns amigos, numa noite memorável. Das 15h às 17h fiquei à conversa com ela (tem 28 anos, é pouco mais velha do que o meu filho maior) como se nos conhecêssemos de longa data: falámos de memórias, de pensamentos, de projetos e ela partilhou o gosto pela sua terra (as belezas naturais e culturais, as lendas…) e o desgosto pela administração corrupta que envolve explorações de granito e negociatas escuras. Adorei a maturidade e a finura do seu pensamento critico tanto sobre as questões humanas, como de cidadania ou sobre as questões ecológicas e ambientais.

Depois de me inscrever no albergue – fui a primeira a chegar mas a última a dar entrada porque dão prioridade a quem já vem a pé no caminho – voltei a sair e fui ter com a S., o marido e um casal amigo – uma artística plástica e escritora que é filha da terra e regressou depois de correr mundo e o seu companheiro, brasileiro de S. Paulo e ativista social. À boa maneira portuguesa, os amigos dos nossos amigos, nossos amigos são: receberam-me como se fosse família, fomos às compras e jantámos em casa de um dos casais, com uma bela música de Jazz em fundo e uma boa conversa. Um pouco antes das 22h – a hora de entrada no Albergue é até às 10h da noite - fiz uma saída de Cinderela, despedi-me e fui a correr pela vila até ao albergue, acompanhada pela S., pelo marido e pela filhota.

O albergue fica num palacete recuperado, é funcional e está bonito. Apesar de ser enorme, está cheio de peregrinos de todas as idades e nacionalidades. Fico numa grande camarata, no sótão. Está escuro, mas no meio tem um enorme janelão por onde entram as luzes de Ponte de Lima refletidas sobre o rio; e, por onde entram também as musicas dos carroceis que sobraram das festas da terra. Pensava que não conseguia dormir, mas consegui; pelo menos, até acordar a meio da noite com a sensação desagradável de estar a sangrar do nariz. Fui à casa de banho resolver a situação e ainda voltei para descansar mais um bocado.

Às 5h da manhã estava a pé para arrumar tudo com calma e sair pela fresca.

Isabel Passarinho

(continua...)

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